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Não há uma fórmula correta para saber quando um namoro vai evoluir para um casamento ou qual o melhor momento para se fazer o pedido. Há pessoas que namoram por anos, se dão bem desse jeito, mas não querem ter o compromisso de morar junto e passar pelos desafios que apenas a convivência diária possibilita. No lado oposto, há casais que estão divorciados meses após o casamento.

Mesmo não havendo uma maneira certa de lidar com um relacionamento, logo pensamos em amor, respeito e suporte como características de um casal. E isso não é diferente em casamentos onde uma pessoa do casal (ou os dois) possui deficiência visual.

O casamento de Régia Monteiro, 41 anos, e Edilamar Sena, 35, começou de forma pouco convencional. Os dois frequentavam um grupo de paquera no WhatsApp, o Livres Para Amar, começaram a conversar em privado e decidiram ficar juntos. Superaram a dificuldade da distância – ela é de Fortaleza e ele de Salvador – e Régia deixou todas as suas coisas na capital cearense e veio morar na Bahia com o atual marido.

Mudanças

Agmira do Nascimento, 60, cozinhava um peixe na casa onde trabalhava como governanta, em Itapuã, quando o óleo respingou em seu olho, resultando em uma úlcera na córnea. Foi assim que ela perdeu a visão no olho direito, já aos 41 anos. Na época, ela e o esposo, Silvio, de 63, já eram casados há mais de 15 anos. Pouco depois, ela foi diagnosticada com uveíte (inflamação na íris, coroide ou corpo ciliar) e deslocamento de retina, resultando na perda de visão também do olho esquerdo.

 

O apoio que ela recebeu do marido na época não impediu que o casamento dos dois terminasse depois. Segundo Agmira, o rompimento nada teve a ver com a perda de sua visão. “Você sabe que todos os casais têm essas zangazinhas. Mas acabamos brigando e ele saiu de casa”, lembra. Após o rompimento, Silvio viajou para São Paulo, onde morou por pouco mais de dois anos.

 

Em seu retorno a Salvador, ele estava decidido a retomar o seu casamento. Então, procurou Agmira e os dois fizeram as pazes após alguns dias. “Agora estamos bem, graças a Deus!”, comemora ela. O apoio inicial do marido e as aulas no CAP foram fundamentais para que Agmira conquistasse sua independência. Mas ela precisou reaprender as coisas, principalmente a se locomover em sua própria casa. “A primeira coisa que fizeram foi tirar as coisas e colocar tudo de um lado só até eu me acostumar e deixaram as portas livres também. Hoje, eu cozinho, lavo roupa, banheiro, faço tudo”.

 

E algumas mudanças começaram a ocorrer na vida de Agmira. Recentemente, ela voltou a ver vultos com o olho direito. “De uma hora para outra eu comecei a perceber luz saindo de minhas vistas e de lá para cá começou a clarear. O médico disso que a uveíte é uma doença tipo uma bolinha preta e ela foi limpando”, explica.

 

Independência e recomeço

Para a psicóloga Natália Monteiro, todo evento traumático na vida dos seres humanos gera uma fase de luto, que antecede a aceitação. Essa aceitação é acompanhada por uma ressignificação de vida, não apenas dentro de casa, mas também no âmbito do trabalho. Nesse contexto, o cônjuge da pessoa que acabou de perder a visão pode auxiliar no processo de aceitação da deficiência visual.

 

“Não adianta também estar ao lado da pessoa, fazendo essa pessoa sempre depender de você. Isso não ajuda. A pessoa precisa de autonomia. O companheiro precisa ajudar, matriculando essa pessoa em um curso de braile, incentivando que ela aprenda a andar com a bengala”, opina a psicóloga. Ela explica que cada pessoa lida diferente com um evento traumático por questão do seu biopsicossocial (história de vida, meio social e biologia específica).

 

E é essa independência que Ana Magalhães, 54, não quer perder caso volte a se casar. Atualmente divorciada, ela teme encontrar uma pessoa que não a estimule em sua independência. “Não quero me envolver com alguém muito caxias, que pegue no pé. Porque eles vão achar que eu não tenho condição de fazer as coisas. Não quero ninguém me negativando”, desabafa.

 

Ela trabalhava como auxiliar de dentista até 2005 – quando precisou se afastar por causa de um problema de retinose pigmentar, que atacou a visão periférica dela. Ela começou a descobrir a doença quando ainda estava casada com o ex-marido Davino Fiuza, com quem teve a filha Luciana, de 25 anos. Quando estavam juntos, os dois não tinham muito o costume de sair e isso se agravou depois que Ana começou a perder a visão.

Atualmente aposentada, Ana revela que realiza as atividades dentro de casa sozinha. “Eu faço tudo: lavo, passo, cozinho e resolvo meus problemas de pagamento e de banco”, afirma.

A deficiência visual também não foi um impedimento para que ela reconstruísse sua vida após o divórcio e desse novas oportunidades ao amor. Ana chegou a ter um relacionamento com uma pessoa cega por quase quatro anos, mas o namoro também não deu certo. “Com o Gilvandro eu ia à missa, visitávamos os irmãos dele no Doron, íamos à praia, viajávamos. Depois ele começou a banda Visão Nordestina e eu ia junto quando ele se apresentava nos lugares”. Como ele morava sozinho, era na casa de Gilvandro que os dois tinham encontros mais íntimos.

 

Para a sexóloga Karin Kruger, o período de “luto” pelo qual a pessoa que adquiriu a deficiência visual precisa passar ao perder a visão vai influenciar em como ela vai lidar com sua deficiência e com suas limitações. “Mas afirmo que o desenvolvimento sexual se dá desde o nascimento, então se a pessoa já era preconceituosa, por exemplo, ela irá continuar com este comportamento após a aquisição da deficiência e isso pode atrapalhar muito sua adequação à nova fase da vida. Por outro lado, a pessoa que nasce com uma deficiência está mais acostumada com as dificuldades que vem lhe causando, e teoricamente terá mais facilidade quando chegar o momento de se relacionar. O maior problema das pessoas que nascem com deficiência é a superproteção da família”, opina. 

 

A sexóloga lembra que os homens são mais visuais no que diz respeito ao erotismo, mas acredita que a principal diferença no momento da adaptação não tem a ver com o gênero da pessoa, mas como ela foi educada, como está sua vida emocional e sua autoestima. “O desenvolvimento sexual da pessoa não diz respeito somente ao relacionamento sexual. A forma como ele se vê no mundo influência muito sua sexualidade. Por exemplo, se a pessoa vem de uma família muito sexista, ou seja, que isso é coisa de homem e aquilo é coisa de mulher, pode dificultar a busca por um relacionamento, colocando nesta pessoa um peso maior do que o real pela busca de um parceiro perfeito”, esclarece.

Na imagem, Ednilson e Mariza estão sentados em um banco, de mãos dadas e rindo.
É possível ver pessoas estudando atrás dos dois. (Foto: Heitor Oliveira) 

Para Ednilson, o que mudou em seu relacionamento com Mariza após a perda de sua visão foram os “jogos que permeiam o casamento”. Por exemplo, para saber a mudança nos cabelos da esposa, ele agora precisava tocar. Ele passou a ver as roupas pela descrição que era feita, além de dar mais atenção ao relacionamento e às formas de manter a atividade sexual. “Enxergando, eu tinha muito da minha comunicação a partir da visão, mas pouca ação. Ou seja, eu contemplava, admirava e me envolvia mais e fazia menos. Sem visão, toda a descoberta das preliminares não é mais visual e sim tátil, então eu já considero isso como uma relação sexual”, revela o estudante de comunicação. 

 

Ele precisou se readaptar para manter sua vida sexual com a esposa. Com a perda da visão, ele passou a dar mais atenção a outros sentidos, principalmente a audição, o olfato e o tato. “A descoberta é tátil, não mais com o olhar. É muito verbal também. O cheiro, o toque e o tom de voz são sempre existentes em uma relação. Quando eu perdi a visão, isso se apresentou mais para mim. Eu consigo enxergar sem o olho”.

Para ele, a coisa mais difícil em um casamento é manter a compreensão. “Há pessoas que só querem ver o seu lado e o do outro não”, acrescenta.

Já Régia, acredita que a presença constante de uma ex-namorada do marido é um dos maiores problemas que os dois enfrentam no momento. “O mais complicado para mim era a ex dele que tentava se envolver em nossa vida. E eu tenho o sangue quente, mas Ed não deixava eu brigar com ela”, diz.

 

Companheirismo

Foi já na vida adulta que José Ednilson Sacramento, 54, perdeu completamente a visão. Aos 17 anos, ele descobriu que era portador de retinose pigmentar – doença hereditária, que causa a degeneração da retina. Aos 32 anos, já casado com Mariza Nunes, ele deixou de enxergar. A perda progressiva da visão lhe fez ficar cerca de 3 anos em casa. “Era um período que, embora eu tivesse o diagnóstico, eu adiava o meu convencimento de que iria ficar cego, porque eu ainda tinha um pouco de visão”, desabafa.

 

Mas Ednilson não teve que enfrentar essa nova realidade sozinho. “O apoio foi total. Eu nunca me queixo para dizer que houve uma reação ou rejeição dela. Primeiro porque a minha perda de visão foi extremamente gradual. Eu não tive nenhum problema em relação à família”, afirma.

 

As mudanças não foram apenas para ele. A esposa também teve que se adaptar. Por exemplo, Mariza gosta bastante de mudar os móveis de lugar quando faz faxina na casa, mas teve que rever isso porque Ednilson precisa grava onde os móveis estão para conseguir se locomover com mais precisão pela casa. “Não acho que a perda da visão dele alterou alguma coisa a ponto de eu precisar ficar me dedicando mais a ele porque ele é muito independente”, diz.

 

Os aprendizados foram inevitáveis para ela. Principalmente depois que o marido começou a fazer aula de orientação e mobilidade no Centro de Apoio Pedagógico ao Deficiente Visual (CAP), em Nazaré, onde aprendeu a se locomover pela rua. “Hoje esse aprendizado é importante para eu ajudar outras pessoas [cegas] nas ruas quando eu encontro”, opina a estudante de artes.

Na imagem, Régia e Edilamar estão abraçados e dando um beijo
(Foto: Heitor Oliveira)

Depois de um tempo juntos, os dois decidiram deixar a casa da família de Edilamar, ter sua própria casa e iniciar os desafios que apenas o casamento pode proporcionar. Atualmente, eles moram em Vila de Abrantes, em Camaçari, com Lívia Rane, 14, filha mais nova de Régia. “Eu o amo e a gente deve sempre buscar a nossa felicidade”, responde Régia quando questionada sobre o porquê de ter largado a antiga vida para fazer uma mudança tão radical como aquela.

 

O casal é deficiente visual. Enquanto a cearense possui apenas 30% da visão nos dois olhos por causa de uma catarata congênita, o baiano já nasceu cego por causa do mesmo problema. E não é apenas Edilamar que passa por essa situação na família. “Minha família tem 14 membros com catarata congênita”, relata.

 

Vida a dois

“Temos uma vida normal. As pessoas perguntam nas ruas como vivemos os dois juntos. É normal como qualquer pessoa, com algumas limitações, mas a gente supera. Eu ajudo ela com as tarefas de casa, como a faxina porque um casal tem que estar em concordância. Varro a casa, lavo louça, mas não cozinho porque sou um desastre”, esclarece Edilamar.

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